Prof. Douglas Barraqui
Ruy Barbosa de Oliveira |
Em
9 de novembro Ruy Barbosa de Oliveira, jurista, político, diplomata, escritor,
filólogo, tradutor e orador, um dos intelectuais mais brilhantes do seu tempo,
publica “Plano contra a Pátria”.
Neste
documento no qual aludia à revolução na hipótese da substituição do Exército
pela Guarda Nacional. Para Ruy Barbosa depois de feita a República, a
federação, a separação entre a Igreja e o Estado, a separação dos poderes, o
regime presidencialista, entre outros, seriam instituídos.
O
documento é um dos articuladores da Revolução Republicana. Ao meu ver é de uma
atualidade singular e, seria, adaptando-se determinados vocábulos e
circunstâncias, perfeitamente adequado ao momento político atual de
polarização, corrupção e desejo de mudança de uma parcela significativa do povo
brasileiro.
Veja
o manifesto abaixo:
“Já ninguém se ilude quanto aos desígnios da
empreitada, a cuja execução estamos assistindo. Os atos sucessivos do
Ministério da Guerra e do Ministério da Justiça, providencialmente reunidos nas
mesmas mãos, em relação ao exército e à guarda nacional não deixam dúvida
nenhuma sobre o projeto subterrâneo, que o gabinete acaricia, e cujo desenlace
se aproxima rapidamente. A cada canto, no seio de todas as classes, nos
círculos de todas as ordens de ideias e interesses, não há quem não reconheça,
quem não aponte, quem não discuta a longa trama tortuosa, que se vai
desdobrando para um fim evidente; e é mister que a imprensa não abafe o eco do
sentimento geral, da apreensão geral, da geral antipatia, com que os espíritos
mais diversos nas conveniências, nos princípios, nas aspirações se ajustam na
reprovação desse enredo e na previsão, mais ou menos clara, das suas consequências
funestas.
Uma prevenção malévola incha de maquinações
temerárias o ânimo do governo contra o exército e a armada. Quanto mais a
população se aproxima dessas classes, quanto mais com elas simpatiza, quanto
mais estreita afinidade se estabelece entre a vida civil e a vida militar,
quanto mais a força armada se retempera nas fontes vivas da evolução nacional,
tanto mais profunda se acentua, nas influências que hoje dominam e absorvem a
coroa, a desconfiança contra esse elemento de paz, de segurança, de liberdade.
Enquanto, noutros países, a realeza se compraz, se expande e se revê no
desenvolvimento dos exércitos de mar e terra, buscando fazer deles um laço de
união indissolúvel entre a monarquia e a nacionalidade, aqui, nestes últimos
tempos, à medida que a obscuridade eterna vai descendo sobre o espírito do
Imperador, uma suspeita maligna envesga contra o soldado brasileiro as disposições
da camarilha atarefada em preparar a sucessão do Conde d’Eu. Coube ao Partido
Liberal a desgraça de achar-se, num período de gravidade suprema como este, sob
a direção de homens, cuja ambição se ufana de assentar o pedestal da sua glória
sobre o aviltamento dos seus concidadãos. Entregaram-no, pois, traído, a essa
obra nefasta em benefício das más inspirações do terceiro reinado, cujo
empreiteiro-mor compreendeu a vantagem de encapar a orientação liberticida dos
seus intuitos sob a responsabilidade de um partido ostensivamente consagrado às
reformas liberais, persuadindo-se de que a bandeira destas, a sua popularidade,
o seu engodo poderiam habilitá-lo a triunfar contra o país, consorciando
habilmente a astúcia com a força, mediante a eliminação ob-reptícia do exército
brasileiro.
Os documentos dessa conjuração aí avultam na
história destes últimos meses, harmonicamente entretecidos numa urdidura, cuja
evidência só não se patenteia aos idiotas. Por sobre a armada passa o vagalhão
do ministro da Marinha, açoitando-a, estalando-a, enlameando-a, atirando-a ao
longe, desagregada, rota, esparsa, na expectativa de anular-se164 lhe o
civismo, e arruinar-se-lhe a solidariedade pela dispersão, pela cizânia, pela
instabilidade das posições. Com o exército uma política insidiosa e tenaz usa
alternativamente a corrupção e a violência, empenhadas no mesmo propósito com a
mais óbvia harmonia de colaboração. Um a um vão-se-lhe destacando os batalhões
para os pontos mais longínquos do império, enquanto uma contradança incessante
transfere os comandantes dos corpos, buscando levar a toda a parte a confusão
da incerteza, e desdar sistematicamente os vínculos estabelecidos pela
confraternidade militar entre superiores e inferiores, entre soldados e
oficiais.
Ao mesmo passo, contra todos os compromissos do
Partido Liberal, sem a menor explicação plausível na situação interior e
exterior do país, organiza-se rapidamente, na corte, a guarda nacional. Os
banqueiros presenteados pelo ministério, co-interessados na política mercantil
que o absorve, são chamados a comandar os novos batalhões, atropeladamente
recrutados, retribuindo ao governo em atividade na consumação deste seu empenho
benesses, com que ele profusamente os mimoseia nas honras heráldicas, nos
arranjos bancários, nas empresas industriais. Graças a essa permuta de
serviços, o fardamento, o armamento, o municiamento completam-se com uma
celeridade inaudita, que não se poderia exceder, se tivéssemos o inimigo
devastando-nos a fronteira, e a salvação da nossa integridade territorial
pusesse urgentemente em contribuição toda a energia do Governo. Este não põe
rebuço nas suas preferências pela instituição rediviva, alvo do ridículo geral
no dia da sua reaparição e da antipatia pública no rápido curso de seu
desenvolvimento. Um oficial que, a 7 de setembro, levantara a espada, na Rua do
Ouvidor, contra as gargalhadas dos espectadores, teve dias depois numa
condecoração o prêmio da façanha. Põe-se timbre em dar à nova milícia armas de
excelência superior às tropas de linha. Encomenda-se-lhe, ao que se diz,
artilheria Krupp, à custa dos argentários, que vieram converter a guarda
nacional em um ramo armado dos bancos. Aceleram-se-lhe violentamente os
exercícios. Empregam-se os inválidos em brunirlhe e assear-lhe o armamento. E,
para que nada falte à pompa do seu triunfo, assegura-se que, à míngua de praças
adestradas nas suas fileiras, artilheiros de linha, carnavalescamente
fantasiados em guardas nacionais, figurarão solenemente, a 2 de dezembro, na
parada das milícias do príncipe consorte.
Entanto, o exército ir-se-á escoando, batalhão a
batalhão, até desaparecer da capital do império o último soldado, e ficar o Rio
de Janeiro entregue às forças do Conde d’Eu: a polícia, a guarda cívica, a
guarda nacional.
Para encobrir as intenções reais da traça
inenarravelmente maligna e grávida de perigos, que acabamos de bosquejar,
dando-lhe visos de legitimidade, a velhacaria explorada consiste na mais
pérfida e caluniosa propaganda contra o bom nome do exército e da esquadra,
maculados pelas intrigas oficiais, cuja senha se cifra em descrever as nossas
forças militares como um ninho de revolução e indisciplina. A falsidade é digna
da causa, a que serve.
m apoio dessa atoarda, propalada com insistência,
com jeito, com uniformidade sistemática pelos atos do governo, pelas
insinuações da sua imprensa, pelas confidências aparentes de seus familiares,
não há, em toda a nossa história, um fato, uma circunstância, um vislumbre de
prova indiciativa. Percorramos a crônica destes últimos três anos, desde a primeira
emergência da questão militar, desde que os seus sintomas iniciais, denunciando
os passos de ensaio na luta do governo contra o exército e armada, coincidiam
com a moléstia do Imperador e a iminência da ascensão de sua filha ao trono.
Onde em todo esse largo trato 165 de tempo o menor toque de rebeldia no
procedimento dos nossos bravos soldados, dos nossos gloriosos oficiais?
Começou esse período na situação conservadora,
sob o ministério Cotegipe, em conseqüência de infrações palpáveis do direito
militar, cometidas por ele. Na sua resistência circunspecta, respeitosa,
cordata contra o abuso, obedeceu o exército a impulsos condenáveis,
desconhecendo a razão, e impondo o capricho? Mas a nação inteira pronunciou-se
por ele. Mas o Partido Liberal em peso levantou-se contra o governo, argüindo-o
de tirania contra os brios da farda brasileira, exortando-a a não esmorecer no
conflito, e fraternizando com ela, nas confabulações particulares, na imprensa,
no parlamento. Mas a representação nacional, pelo seu único órgão são e
prestigioso, o Senado, reprovou a atitude ministerial. Mas o atual presidente
do Conselho, o senador Afonso Celso, foi exatamente quem iniciou, naquela
câmara, a moção, onde se convidava o gabinete a recuar de um caminho hostil à
legalidade. Mas o gabinete mesmo reconheceu o seu erro, retratando-se dele,
penitenciando-se publicamente da culpa, e cedendo sem reservas ao exército o
que o exército reclamava.
Teve a questão a sua segunda fase no ministério
10 de março. Mas de onde proveio ela? Do infausto pensamento, já então
externado pela família imperial, mediante fatos materiais e escandalosos, de
criar uma guarda sua contra a nação, de entrincheirar-se na escória das ruas
contra o povo, de semear pelas sarjetas da cidade os primeiros germens da
guerra civil. E que fez o exército? Onde sofreu por ele a ordem pública, a
segurança da propriedade, a autoridade dos poderes constituídos? Qual foi o
dia, em que a imprensa o tachou de ameaçar a nação? Quando é que o jornalismo
brasileiro deixou de estar ao seu lado, animando-o, aplaudindo-o, coroando-o?
Com o ministério Ouro Preto sobrevém a terceira
crise da questão formidável. Mas por quê? Exatamente porque o inaugurador da
situação liberal timbra em pautar o seu governo pelo padrão dos abusos, que a sua
parcialidade exprobrava, com toda a eloqüência da sua indignação, aos dois
gabinetes conservadores. Metendo no seu seio o Barão de Ladário, esse
ministério nasceu com uma bomba no flanco. Esse nome era um programa contra a
marinha. Contra o exército o ministério 7 de junho reviveu, desenvolveu,
entretém a colisão por uma série de revoltas formais contra a legalidade e a
dignidade militar:
Pela prisão do tenente Carolino;
Pela denegação caprichosa do conselho de guerra;
Pela demissão do coronel Mallet a bem do serviço;
Pela exoneração insidiosa do general Miranda
Reis;
Pela censura à oficialidade da segunda brigada a
propósito da legítima expansão dos seus sentimentos em aplauso de um mestre
venerando cuja palavra o ministro da Guerra escutara em silêncio aquiescente;
Pela ordem que remove para as fronteiras do
império o tenente Carolino, roubando-lhe as garantias da defesa militar, e
entregando a justiça, no exército, ao arbítrio administrativo;
Pela segunda tensão transparente nessa reconstituição
violenta da guarda nacional;
Pela missão implicitamente confiada a esta no seu
armamento em condições superiores ao da força de linha;
Pela dispersão gradual dos batalhões.
E como tem resistido, até hoje, o exército a
esses desmandos, a essas prevaricações, a essas crueldades? Simplesmente
requerendo o cumprimento da lei, e deixando aos órgãos da opinião a discussão
dos seus direitos. Não obstante, um sistema de suspeita, de prevenção, de
espionagem se estabeleceu contra ele, como se fosse uma Internacional armada,
uma maçonaria carbonária, uma arregimentação de desordeiros refolhados, de cuja
presença fosse necessário varrer as imediações do trono, para o entregar nos
braços das hostes pretorianas, a cuja inconsciência César confia a herança de
seu genro. Infelizmente para o governo, a população o conhece, discerne
claramente os interesses a que ele serve, os projetos que encuba, os
instrumentos de que se utiliza.
O povo brasileiro sabe a que procedências se vai
buscar a nova guarda nacional, evocada com a instantaneidade de um improviso, e
não perde, iludido pelo disfarce dos novos figurinos, a fisionomia da desordem,
da capangagem, do elemento anárquico, subversivo e irresponsável, meneado, nas
eleições, pelos cabecilhas locais. O povo brasileiro não esquece que essa
polícia, armada agora à Comblain, para poder medir forças com a tropa de linha,
representou sempre o princípio perturbador, a passividade malfazeja, a
violência impune nos anais desta cidade, onde, nos dias da questão
abolicionista, foi preciso enjaulá-la, certa vez, num quartel, para evitar
sanguinosas desforras contra os sentimentos liberais da população fluminense. O
povo brasileiro sabe, enfim, que o exército não personifica senão as grandes
tradições da pátria, na paz e na guerra, e que os que não confiam nele, é
porque têm razões para desconfiar da – nação.
Na sua transição para o terceiro reinado a
monarquia orleanizada precisa de massas brutas, de forças passivas, para
arremessar contra o país, cortando-lhe a evolução natural, e levantando, neste
continente, uma potência anti-americana, sob a influência dos preconceitos
incuráveis das velhas casas reinantes da Europa, expatriadas pela liberdade
vitoriosa e trazidas a estas plagas pela nossa má estrela como agoureiras aves
de arribação. Mas o exército, que não se compõe de revolucionários, também não
consta de janízaros. Não é áulico, nem político. Não pertence à dinastia, nem
às facções. É nacional, e é constitucional. É a guarda das instituições contra
a desordem e contra a tirania. É a soberania da lei armada. É o baluarte das
nossas liberdades orgânicas contra as conspirações, que as ameaçarem. Forma em
torno do direito popular a trincheira impenetrável do heroísmo; e as opiniões,
as propagandas, as reivindicações pacíficas expandem-se legalmente à sombra da
sua imparcialidade tutelar. Não há de prestar à escravidão política os ombros
com que destruiu a escravidão civil. Aqui está por que as prevenções palacianas
se voltam hoje contra o exército, ao mesmo tempo que nele se concentram as
esperanças liberais. Com o instinto desta missão nacional, com a consciência
deste papel patriótico, o exército não pode, e certamente não há de subscrever
a sua própria extinção, e muito menos o aniquilamento pela desonra, pela
calúnia, pela ilegalidade, pela proscrição, essa espécie de morte moral, a que
parece quererem condená-lo, antes de dissolvê-lo. Se o Partido Liberal, pois,
não é um rótulo, um disfarce, uma mentira, considere na terrível
responsabilidade, em que se vai emaranhando, com a sua submissão implícita às
combinações urdidas na política inepta e calamitosa do Visconde de Ouro Preto.
Ao próprio gabinete, se ainda lhe restasse ouvido para ouvir o Conselho, ou a
súplica dos que não negociam com o bem público, ao ministério mesmo, em nome de
todos os deveres que ligam indivíduos e governos à pátria e à humanidade,
adjuraríamos a fugir esse despenhadeiro, renunciando ao intento de dispersão do
exército e entrega da capital à tríplice guarda do paço. Há quase sempre alguma
coisa impalpável e misteriosa no seio dos acontecimentos, que conspira contra
as conspirações, mesmo quando essas vêm de cima para baixo; e esse elemento do
imprevisto bem poderia voltar-se contra os conspiradores de Sua Majestade”.
Fonte:
Diário de Notícias, 9 de novembro de 1889.
Referências:
Diário
de Notícias, 9 de novembro de 1889.
ARAÚJO,
Gisele Silva. Tradição liberal,
positivismo e pedagogia: a síntese derrotada de Rui Barbosa. Perspectivas,
São Paulo, v. 37, p. 113-144, jan./jun. 2010.
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