
O que se segue, meus caros leitores, são trechos da Conferência proferida por Eric Hobsbawm a estudantes de uma faculdade do Leste Europeu, em 1994, logo após a desagregação do mundo socialista. Hobsbawm percebe a função social do historiador em um tempo (fim da guerra fria e início do que convencionar-se-ia a chamar de “nova ordem mundial”, bem certo, acredito que aquele era um momento de incertezas) e, mais ainda, percebe o papel do professor de uma universidade em sua plenitude, tudo que eu sempre acreditei e esperava dos meus professores. Bem como espero que eu esteja atingindo na qualidade de educador.
“Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria prima para o vício da heroína. O passado é um elemento essencial, talvez, o elemento essencial nessas ideologias. Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. [...] O passado legitima. O passado fornece um plano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar. Eu me lembro de ter visto em algum lugar um estudo sobre a civilização antiga da cidades do vale do Indo com o título Cinco mil anos de Paquistão. O Paquistão nem mesmo era cogitado antes de 1932-3, quando o nome foi inventado por alguns militantes estudantis. Apenas se tornou uma demanda política séria a partir de 1947. [...] Mas, de certo modo, 5 mil anos de Paquistão soam melhor do que 46 mil anos de Paquistão.”
[...] “Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário, digamos, da de físico nuclear, não pudesse pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como os seminários nos quais o Ira aprendeu a transformar fertilizante químico em explosivos. [...] Temos uma responsabilidade pelos fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político ideológico da história em particular.
Pouco preciso dizer sobre a primeira dessas responsabilidades. Não teria nada a dizer, não fosse duas circunstâncias. Uma delas é o modo atual de os romancistas basearem seus enredos na realidade constatada em lugar de inventá-los, confundindo com isso a fronteira entre fato histórico e ficção. [...] Não podemos inventar nossos fatos. Ou Elvis Presley está morto ou não. [...]”
“[...] Temos de resistir a formação de mitos nacionais, étnicos e outros, no momento em que estão sendo formados. Isso não nos fará populares. [...] Mas, isso tem que ser feito, e espero que os historiadores aqui presentes o façam.
Isso é tudo o que eu queria dizer sobre o dever dos historiadores. Porém antes de terminar, quero lembrar mais uma coisa. Como estudantes dessa universidade, vocês são pessoas privilegiadas. As perspectivas são as de que, como bacharéis de um instituto conhecido e privilegiado, irão obter, se assim escolherem, uma ótima condição na sociedade, carreiras melhores e ganhos maiores que os de outras pessoas, embora não tanto quanto os de prósperos homens de negócio. O que eu quero lembrar a vocês é algo que me disseram quando comecei a lecionar em uma universidade. ‘As pessoas em função das quais você está lá’, disse meu próprio professor, ‘ não são estudantes brilhantes como você. São estudantes comuns com opiniões maçantes, que obtêm graus medíocres na faixa inferior das notas baixas, e cujas respostas nos exames são quase iguais. Os que obtêm as melhores notas cuidaram de si mesmo, ainda que seja para eles que você gostará de lecionar. Os outros são os únicos que precisam de você’.
Isso não vale apenas para a universidade, mas para o mundo. Os governos, o sistema econômico, as escolas, tudo na sociedade não se destina não se destina ao benefício das minorias privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para o benefício da grande maioria das pessoas, que não são particularmente inteligentes ou interessantes [...], não são prósperos ou realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para história como indivíduos no registro de nascimento, casamento e morte. Toda a sociedade na qual valha a pena viver é uma sociedade que se destina a elas, e não aos ricos, inteligentes e excepcionais, embora toda a sociedade em que valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para tais minorias. Mas, o mundo não é feito para nosso beneficio pessoal, e tão pouco estamos no mundo para nosso benefício pessoal. Um mundo que afirma ser esse o propósito não é bom e não deve ser duradouro.”
Bibliografia:
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 17-21.