sexta-feira, 6 de abril de 2012

A Canja do Imperador: bom apetite

Por Douglas Barraqui

A Canja do Imperador, livro do jornalista J. A. Dia Lopes, conta as curiosas histórias em torno da vida e da mesa de personalidades de várias épocas: Dom Pedro I, Dom Pedro II, Dom João VI, João Paulo II, John F. Kennedy, Marilyn Monroe, Hemingway, Freud, Churchill, Balzac, Casanova, Átila, Nostradamus, Portinari, Napoleão, Carlos Magno, Salvador Dalí, Grace Kelly, Carmen Miranda, entre outros. A obra revela as preferências culinárias e curiosidades à mesa de grandes reis, rainhas, imperadores, papas, escritores, chefs famosos entre outros nomes conhecidos da humanidade, através de uma coletânea de 74 crônicas. Cada crônica contém uma receita, às vezes desenvolvida pelo próprio personagem e testada por algum chef conhecido ou cozinheiro.

Trata-se de uma obra de um Jornalista. É gostosa de ler não somente por contar as curiosidades da gastronomia através dos tempos, descobrir ingredientes, vinhos e outras bebidas, aprender a origem de receitas clássicas, preparadas ainda hoje na cozinha contemporânea, mas também por desvendar certas linhas da história que são pouco pesquisada. Eu recomendo esta obra e faço questão que tenham um bom apetite com o trecho que se segue:

“Nunca houve alguém que gostasse tanto de canja quanto o imperador Dom Pedro II. Impossível calcular quantas vezes ele saboreou esse prato em 66 anos de vida (1825-1891). Era um predileção tão forte que se tornou, nos últimos tempos, o único prato de suas refeições. Tanto fazia se era canja de galinha ou de macuco - ave brasileira como o peru, conhecida pelo pio de uma nota só, pelo ovos azuis e pela carne deliciosa, atualmente ameaçada de extinção e protegida por lei. O importante é que fosse um sopa rica, capaz de dispensar pratos complementares. O imperador a sorvia com surpreendente prazer para uma pessoa de paladar pouco exigente. Seus olhos brilhavam de felicidade cada vez que levava á boca a colher de prata com aquela saborosa combinação de arroz, caldo e carne.

Contudo, comia sempre com pressa. Em um dos capítulos da Antologia da alimentação no Brasil (op. cit.), organizada pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo, o historiador Hélio Vianna assinala que o imperador se alimentava rápido demais, geralmente sozinho ou acompanhado apenas pelos dois cadetes da Escola Militar que o escoltavam nas saídas do Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Se os rapazes não acompanhassem o ritmo de Dom Pedro II, saíam da mesa com fome. "Pára a má saúde de Dom Pedro II, em seus últimos anos de vida, terá contribuído a pressa com que comia", afirma Hélio Vianna.

Na biografia intitulada Artur Azevedo e sua época (São Paulo: Saraiva, 1953.), o escritor R. Magalhães Júnior diz que o imperador ia ao teatro para assistir companhias teatrais européias. Acompanhava o espetáculo sem bocejar ou dormir, como seu avô Dom João VI, mas fazia questão de saborear "uma canja quente entre segundo e o terceiro ato, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que Sua Majestade terminara a ceiazinha".

Órfão de mãe com 1 ano de idade e tendo 6 anos quando pai, Dom Pedro I, abdicou do trono do Brasil em seu favor, Dom Pedro II foi criado por aias, preceptores e tutores. Teve educação particular severa e esmerada. Aprendeu alemão, astronomia, ciências naturais, dança, desenho, direito, equitação, esgrima, filosofia, francês, geografia, hebraico, história, inglês, literatura, matemática, medicina, música, piano, pintura e português.

Homem de cultura, afeiçoado às letras e artes, vivia entre os livros. Financiou escritores e artistas, correspondeu-se com personalidades internacionais, como o naturalista suíço Agassiz, o diplomata e homem de letra francês Pasteur, pai da microbiologia, e o compositor alemão Wagner. Fez duas longas viagens ao exterior, a primeira de maio de 1871 a março de 1872, a outra de março de 1876 a setembro de 1877. Numa caricatura da época, aparece gritando ao desembarcar em porto estrangeiro: "Onde estão os sábios? Nesse país não há sábios? Quero ver os sábios". Entretanto, não lhe ensinaram exercitar o paladar com receitas da cozinha requintada - ou ele não se interessou por essa disciplina. Além disso, era abstêmio.

Para satisfazer o apetite do nosso monarca, bastavam uma canjinha de galinha ou macuco e alguns copos de água com açúcar. Hélio Vianna conta ainda que o Barão de Paranapiacaba, com o qual Dom Pedro II realizou a tradução de Prometeu acorrentado, do grego Ésquilo, surpreendeu-se com a composição do refresco do qual o imperador se servia constantemente, para enfrentar o calor carioca. Não passava de simples água com açúcar, armazenada em um grande jarro. Nas viagens ao exterior - sempre pagas por ele, sem jamais aceitar ajuda de custo - interessou-se por alguns doces, todos muito simples. Na Espanha, por exemplo, elogiou "argolas de pão-de-ló com açúcar".

A frugalidade do imperador, porém, não influenciava a corte e a sociedade. No seu reinado, o Rio foi contagiado pela moda da culinária francesa. A adoção dessa cozinha virou sinônimo de comer bem e, sobretudo, de bom gosto. No segundo volume de História da alimentação no Brasil (op. Cit.), Luís da Câmara Cascudo lembra que "um prato levado à mesa devia Ter nome francês, ou não ser levado". Sopas portuguesas eram chamadas de potages. Peru recebia o nome de dindon. Ao longo de sua obra, o romancista Machado de Assis documenta as estrangeirices da época, como croquete, maionese de peixe e rosbife, que qualificava de "bife cru".

Prato de origem asiática, a canja veio para o Brasil depois de fazer escala em Portugal. No seu Novo dicionário da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.), Aurélio Buarque de Holanda Ferreira diz que a palavra vem do malaiala kanji. É a língua falada em Malabar, na costa sul-ocidental da Índia, onde ficava a colônia portuguesa de Goa. Significa arroz com água. A kanji já aportou no Brasil levando carne de galinha, também indiana. Na transmigração, a receita ainda foi acrescida de alho, pimenta-do-reino, cebola, louro, batata e até cenoura. Atualmente, há quem coloque no fundo do prato, antes de servir, um pão passado na chapa e temperado com alho. No início, era comida para doentes e refeições familiares. Depois, virou prato da jantares elegantes e ceias intelectuais. No Brasil, a palavra ganhou novas acepções. "Dar uma canja" é o mesmo que se apresentar de graça. Cantores profissionais fazem isso em bares noturnos, após três ou quadro doses de uísque. "Ser canja" tem o sentido de coisa fácil de conseguir. Outra paixão do imperador foi o sorvete, introduzindo no Brasil a partir de 1834, quando passou a chegar gelo natural. Vinha dos Estados Unidos, retirado de lagos congelados. Os americanos desenvolveram uma tecnologia que solucionou o problema de estocagem do gelo em navio e armazenamento no porto. Segundo Carlos Ditadi, pesquisador do Arquivo Nacional, do Rio de Janeiro, que estuda o assunto, o sorvete tinha duração efêmera. Ainda assim, chegava em volume suficiente para revolucionar a doçaria carioca. A população o recebeu com desconfiança, suspeitando que "queimasse as tripas". O preconceito com sorvete só acabou quando D. Pedro II, ainda menino, obteve licença de seus responsáveis para experimentar a novidade.

Os depósitos de gelo e as sorveterias foram se multiplicando no Rio de Janeiro. A maioria ficava no centro da cidade. O italiano Antonio Francione, instalado na Rua Direita, anunciava seu negócio intitulando-se "sorveteiro de Sua Majestade". Crônicas da época dizem que o imperador preferia o de pitanga. A fruta era colhida de árvores existentes na orla então deserta de Copacabana. Mas existiam sorvetes de outras frutas tropicais, como abacaxi, caju e coco. Segundo Hálio Vianna, o consumo excessivo de água com açúcar, além de doces e sorvetes, contribuiu para que Dom Pedro II "acabasse diabético". Não foi essa, porém, a doença que o matou. O simpático imperador brasileiro morreu no exílio, em um modesto hotel de Paris, amargurado pela saudade da pátria amada, vitima de pneumonia contraída durante o inverno, no caminho da biblioteca onde continuava a ler livros.”

REFERÊNCIA:

DIAS LOPES, J. A. A canja do Imperador. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004. 

2 comentários:

Paulo Veras disse...

Amigo Douglas, você não faz idéia, do quanto os seus comentários enriquecem em muito o blog. Lamento morarmos tão longe, porque assim, poderíamos marcar uma boa mesa regada a um bom papo, na visão de um historiador.

Claro que você pode sim usar o texto com seu alunos. Sinto-me lisonjeado e ao mesmo tempo responsabilizado. Por favor, sempre que possível, faça seus comentários. Eu gosto muito e garanto que não somente eu.
Um abraço

DoUgLaS BaRrAqUi disse...

Ola meu caro amigo,

Seria um prazer trocar alguns pensamentos contigo em volta de uma mesa.

Pois bem, pretendo trabalhar com seu texto em torno do debate da construção da memória histórica (como por exemplo, como pessoas da mesma idade, de um mesmo lugar podem ter entendimentos tão distintos sobre um fato do passado) e da idealização do passado.

Tenho certeza que será frutífero. Assim farei menção a ti, se esqueci de alguma coisa ajuste para mim, obrigado:

"Paulo Veras é Professor universitário de Goiânia-GO. Graduado, Licenciado com o grau Psicólogo com atuação em Clínica, Recursos Humanos e especialista em educação especial".


muitas alegrias em decorrência do sucesso para todos nós!