Prof.
Douglas Barraqui
Riacho do Ipiranga, setembro
de 1822, o príncipe regente D. Pedro, futuro imperador do Brasil e rei de
Portugal, estava com fortes dores intestinais. Se via obrigado, em intervalos
regulares, a apear do animal que o transportava, uma mula, para “prover-se” no
denso matagal que cobria as margens da estrada. Acredita-se que tenha sido
algum alimento mal conservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral
paulista, ou a água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas
de mula na serra do Mar.
D. Pedro era acompanhado por
uma comitiva relativamente modesta para a importância daquele momento
histórico. Além da guarda de honra, acompanhavam D. Pedro o coronel Marcondes,
o padre Belchior, o secretário itinerante Luís Saldanha da Gama, futuro marquês
de Taubaté, os criados particulares João Carlota e João Carvalho e o ajudante
Francisco Gomes da Silva, “O Chalaça”
(algo como zombeteiro, gozador ou piadista), que acumulava as funções de “amigo,
secretário, recadista e alcoviteiro” de D. Pedro.
Antes mesmo da subida da
serra os problemas intestinais forçaram o príncipe a se refugiar na modesta
estalagem situada à beira do porto. Maria do Couto, responsável pelo
estabelecimento, preparou-lhe um chá de folha de goiabeira, remédio ancestral
usado no Brasil contra diarreia.
No cair da tarde daquele
Sete de Setembro a comitiva chegou à colina do Ipiranga. Por ordem do príncipe
que, mais uma vez se vira compelido por fortes dores estomacais, a jornada foi
mais uma vez interrompida. Em tupi-guarani, Ipiranga significa “rio vermelho”.
Naquela época, apesar da tonalidade escura e barrenta de suas águas (daí a
denominação), era um arroio selvagem e sem poluição. Hoje, é um canal de
esgotos encaixotado sob o asfalto e o concreto de uma das maiores metrópoles do
planeta, São Paulo.
D. Pedro ainda estava no
alto da colina quando chegou a galope, vindo de São Paulo, o alferes Francisco
de Castro Canto e Melo. Ajudante de ordens, amigo de D. Pedro e irmão de
Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos, amante de D.
Pedro I. Ao se encontrar com a comitiva real, Canto e Melo trazia notícias
inquietantes, mas sequer teve tempo de transmiti-las a D. Pedro. Logo atrás
dele chegaram dois mensageiros da corte do Rio de Janeiro. Exaustos e
esbaforidos, Paulo Bregaro, oficial do Supremo Tribunal Militar, e o major
Antônio Ramos Cordeiro que, praticamente sem dormir, tinham percorrido a cavalo
cerca de quinhentos quilômetros em cinco dias. Eram portadores de mensagens
urgentes enviadas por José Bonifácio e a princesa Leopoldina, mulher de D.
Pedro, encarregada de presidir as reuniões do ministério na ausência do marido.
A carta da princesa Leopoldina recomendava ao marido prudência e que ouvisse
com atenção os conselhos de José Bonifácio. A mensagem do ministro dizia que
informações vindas de Lisboa davam conta do embarque de 7.100 soldados que,
somados aos seiscentos que já tinham chegado à Bahia, tentariam atacar o Rio de
Janeiro e esmagar os partidários da Independência. Diante disso, Bonifácio
afirmava que só haveria dois caminhos para D. Pedro. O primeiro seria partir
imediatamente para Portugal e lá ficar prisioneiro das cortes, condição na qual
já se encontrava seu pai, D. João. O segundo era ficar e proclamar a
Independência do Brasil, “fazendo-se seu imperador ou rei”.
Mas, e o brado
“Independência ou Morte”, famoso “grito do Ipiranga”? Ele existiu? Veja abaixo três
relatos para os fatos que ocorreram:
Relato
do Padre Belchior:
Pela descrição do padre
Belchior não houve sobre a colina do Ipiranga o “Independência ou Morte”. Veja
o relato do padre abaixo:
“D.
Pedro, tremendo de raiva, arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os,
pisou-os e deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para
mim e disse:
— E
agora, padre Belchior?
Eu
respondi prontamente:
— Se
Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e, talvez,
deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação.
D.
Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro,
Bregaro, Carlota e outros, em direção aos animais que se achavam à beira do
caminho. De repente, estacou já no meio da estrada, dizendo-me:
—
Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem,
chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto
vale o rapazinho. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada
mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado
de Portugal.
Respondemos
imediatamente, com entusiasmo:
— Viva
a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro!
O
príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e falou:
— Diga
à minha guarda que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos
separados de Portugal”.
Relato
do alferes Canto e Melo:
O relato do Alferes foi registrado
bem mais tarde. Em um momento em que o acontecimento já havia entrado para o
panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes Francisco de Castro
Canto e Melo e irmão de Domitila de Castro Canto e Melo, de tom obviamente
militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, D. Pedro teria
lido a correspondência e, “após um momento de reflexão”, teria explodido, sem
pestanejar:
“— É
tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!”
Relato
do Coronel Marcondes:
O coronel Marcondes,
infelizmente não estava no alto da colina do Ipiranga em condições de
esclarecer as contradições entre os depoimentos do padre Belchior e do alferes
Canto e Melo.
“Diante
da guarda, que descrevia um semicírculo, [D. Pedro I] estacou o seu animal e,
de espada desembainhada, bradou:
—
Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo
português! E quanto aos topes daquela nação, convido-os a fazer assim!
E
arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, a arrojou no chão,
sendo nisto acompanhado por toda a guarda que, tirando dos braços o mesmo
distintivo, lhe deu igual destino.
— E
viva o Brasil livre e independente — gritou D. Pedro.
Ao
que, desembainhando também nossas espadas, respondemos:
— Viva
o Brasil livre e independente! Viva D. Pedro, seu defensor perpétuo!
E
bradou ainda o príncipe:
— Será
nossa divisa de ora em diante: Independência ou Morte!
Por
nossa parte, e com o mais vivo entusiasmo, repetimos:
—
Independência ou Morte!”
Como um simples tropeiro,
coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais
do corpo e de seu tempo, por volta de 16:30 do dia 7 de setembro de 1822, D.
Pedro, que completaria 24 anos um mês depois, no dia 12 de outubro, proclamou a
Independência do Brasil as margens do rio Ipiranga, hoje um valão.
Se houve ou não o grito “independência ou morte”, talvez nunca vamos
saber. O fato é que aquela cena que nas palavras de Laurentino Gomes: “... real é bucólica e prosaica, mais
brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E,
ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como
nação independente”.
REFERÊNCIAS:
GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa
triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país
que tinha tudo para dar errado / Laurentino Gomes - Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2010.
SOUSA, Octávio Tarquínio de.
História dos fundadores do Império do
Brasil: a vida de D. Pedro I (três volumes). Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1988.
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