Por Douglas Barraqui
“Cinema e
História” é um livro do historiador francês Marc Ferro. Trata-se de uma das
obras singulares e, em até certo grau inaugural, do campo dos estudos da
relação entre o cinema e a história. Nesta obra o autor nos mostra de que
maneira há uma inter-relação entre as produções cinematográficas e a história.
O livro é
dividido em catorze capítulos em que Marc Ferro analisa o processo de produção de
filmes e a influencia política e social que eles culminaram. Para isso o autor
usa como exemplo filmes como: “O Encouraçado Potemkin”, “O judeu Suss”, “A
grande ilusão”, “M - o vampiro de Dusseldorf”, “O terceiro homem”, entre
outros.
No Capítulo I –
“coordenadas para uma pesquisa” – o autor vai nos dizer que entre o cinema e a
história as interferências são múltiplas. Desde quando o cinema se tornou uma
arte, ele foi usado para intervir na história. Com os avanços tecnológicos,
como advento da câmera super 8, o cinema se tornou muito mais ativo como agente
de uma tomada de consciência social. “Medir ou avaliar a ação exercida pelo
cinema é difícil”, nos diz Marc Ferro.
A intervenção do
cinema é exercida por meio de um certo número de modos de ação que faz do filme
uma ferramenta eficaz, e seria ilusão imaginar que essa prática cinematográfica
é inocente. “Assim como toda produção cultural, toda a ação política, toda
indústria, todo filme tem uma história que é História, com sua rede de relações
pessoais, seu estatuto dos objetos e dos homens, onde privilégios e trabalho
pesados, hierarquias e honras, encontram-se regulamentados [...]”
Neste capítulo
primeiro, portanto, Marc Ferro quer nos mostrar em que pontos o cinema promove
sua interveção, eixos a serem seguidos para quem se interroga sobre a
inter-relação entre cinema e história: 1. Inicialmente como agente histórico;
2. Por um certo número de modos de ação que torna o filme eficaz e operatório;
3. Pela utilização e a prática de modos de escrita específicas o filme se torna
uma arma de combate; e 4. Leitura histórica do filme e leitura cinematográfica
da história.
No capítulo II –
“O Cinema, agente da história” – Marc Ferro analisa uma filmagem de oito
minutos de um campo de concentração para presos políticos na União Soviética. Embora
os soviéticos tenham classificado o filme como uma falsificação grosseira, segundo
o autor, pelas características da filmagem, tratava-se de um curta realizado
para testemunhar.
No capítulo III
– “O poder soviético e o cinema” – “O cinema é um instrumento que se impõe por
si mesmo, é o melhor instrumento de propaganda. ‘apoderar-se’ do cinema,
‘controlá-lo’, ‘dominá-lo’, essas são expressões encontradas constantemente em
Trotski, Lenin, Lunatcharski. [...] ‘O cinema deve ser um contraponto para os
atrativos do álcool, da religião, (...) a sala de cinema deve substituir o
boteco e a igreja, deve ser um suporte para educação das massas.’” Segundo Marc ferro, de fato, e originalmente
era o que defendiam esses dirigentes soviéticos e eles não deixaram de perceber
a importância do cinema. Porém, vai nos dizer Ferro, esse cinema não deixou de
ser autônomo.
Capítulo IV –
“Sobre o antinazismo americano (1939-1943)” – neste capítulo o autor destaca
que enquanto a França não havia uma decisão certa de quem era o inimigo, se era
o nazismo ou o comunismo, nos EUA o inimigo já era certo, mesmo antes de 1939.
Quando declarada a guerra Roosevelt deu instruções para uma produção
cinematográfica voltada para a glorificação e exaltação dos valores americanos.
Marc Ferro destaca ainda que um estudo sobre a ideologia americana através do
cinema, nos anos de guerra, deveria se concentrar em certos grupos de filmes
como: filmes antinazistas, filmes antijaponeses, os grande sucessos de
bilheteria, filmes que justificavam a aliança com a União Sociética e filmes
realizados por ex-comunistas.
Capítulo V –
“Existe um cinema antimilitarista?”
Marc Ferro vai
nos dizer que os filmes antimiritaristas, frequentimente paródicos ou
marginais, abordam a singularidade do militarismo: o espírito militar, o
ridículo e a ingenuidade dos seus dogmas. Uma outra tradição estigmatiza os
excessos da disciplina militar. O autor elabora sua análise a partir de filmes
como: “sem novidade no front”, “morte sem glória”, “a um passo da eternidade”,
“King and Country” entre outros.
Capitulo VI –
“As funções encadeadas de o judeu Süss”
Neste capítulo
Marc Ferro analisa o filme "O Judeu Süss", de Veit Harlan. Filme que
foi lançado no Festival de Veneza em 1940. O filme oferecia tudo o que a
propaganda nazista desejava: técnica apurada, uma história melodramática de
amor e uma orientação antissemita – Veit Harlan sempre negou que tivesse
querido fazer um filme anti-semita.
Segundo Marc
Ferro no filme há quatro funções bem encadeadas nesse filme que fomentam um
condensado da doutrina nazista: 1º quando a câmera deixa o emblema do duque e
se dirigi para o emblema hebraico, pendurado em uma loja do gueto; 2º
quando Süss se barbeia para
visitar o duque, a fusão mostra a
transformação do seu rosto e dos seus trajes;
3º quando Süss despeja sobre a escrivaninha do duque as moedas de ouro
que se metamorfoseiam em bailarinas, e 4º quando condenado e encarcerado Süss
retoma seu semblante de outrora. O que está implícito nestas quatro funções é
que o judeu tem duas caras: a do gueto, que não engana sobre sua natureza
subumana e a da cidade, que ilude pela aparência, mas nem por isso é menos
nocivo.
Capítulo VII – “Sobre a entrevista em Ophuls, Harris e Sedouy”
Le Chagrin et la Pitié é um documentário franco-suiço produzido por Marcel Ophüls, André
Harris e Sedouy, e esta obra marca uma espécie de Revolução de Outubro: por um
lado pela sua repercussão, sem dúvida ligada ao tema do filme, por outro lado
pela sua orientação. Este documentário suscitou uma agitação variável segundo a
ideologia do espectador. Para Marc Ferro, esse sucesso se deve sem dúvida às
qualidades excepcionais da realização do
filme. O que, segundo Marc, não foi suficientemente observado. Na verdade os
autores teriam utilizados um procedimento antigo, porém, de uma nova maneira:
as entrevistas.
Capítulo VIII – “Um combate no filme O Terceiro Homem”
O Terceiro Homem é um dos filmes que marca um movimento que viria a
posterior se transformar em uma onda cinematográfica. Trata-se de um filme
rodado nos esgotos de Viena ocupada e dividida. O filme romantiza a partilha da
Europa no pós-guerra e ao mesmo tempo revelou a crueldade dos agentes
clandestinos que estavam na cidade. Marc Ferro, ao analisar o filme, descreve
essa tragédia política, escrita no contexto espiritual da Guerra fria.
Tratava-se de uma obra anticomunista, embora, nem sempre explicitada, portanto,
bem realizada, nos diz Marc Ferro.
Capítulo IX – “Dupla acolhida para A Grande Ilusão”
A Grande Ilusão, nos diz Marc Ferro, terá uma “dupla acolhida”: o filme mostrava uma realidade da história que
não estava na luta entre as nações, mas sim na luta de classes, e logo, a
guerra não deveria ter razão de ser; todavia, outras interpretações sobre o
filme, mostram que seu conteúdo não deixa de ser ambíguo.
Capítulo X – “Sobre três maneiras de escrever a história”
Nos diz Marc
Ferro: “O historiador tem por função primeira restituir à sociedade a História da
qual os aparelhos institucionais a despossuíram. Interrogar a sociedade, pôr-se
à sua escuta, esse é em minha opinião o primeiro dever do historiador.”
Marc Ferro diz
que Em lugar de se contentar com o utilização de arquivos, o historiador
deveria antes de tudo criá-los e contribuir para a sua constituição: filmar,
interrogar aqueles que jamais têm direito à fala, que não podem dar seu
testemunho. O historiador, nos diz o autor, tem por dever despossuir os
aparelhos do monopólio que eles atribuíram a si próprios e que fazem com que
sejam a única fonte da história. Não satisfeitos em dominar a sociedade, esses
aparelhos (governos, partidos políticos, Igrejas ou sindicatos) acreditam ser
sua consciência. “O historiador deve ajudar a sociedade a tomar consciência
dessa mistificação.”
Capítulo XI – “O
filme: uma contra-análise da sociedade?”
“Seria o filme
um documento indesejável para o historiador? [...] o filme não faz parte do
instrumento mental do historiador”, é o que nos diz Marc Ferro: na verdade “o
cinema ainda não era nascido quando a historia se constituía, aperfeiçoou seus
métodos.”
No começo do
século XX era visto, pelos”espíritos superiores”, como uma “máquina de
idiotilização e de dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas
miseráveis exploradas por seu trabalho”.
A própria noção de tempo histórico mudou, o trabalho do historiador
mudou e a história se transformou e o filme continua na porta do laboratório.
Capítulo XII – “Ficção e realidade no cinema: uma greve na antiga
Rússia”
Neste capítulo
Marc Ferro destaca Alexandre Nevski e Andrei Rublev, obras primas que foram
capazes de reproduzir o passado de uma forma “exemplar”. Ferro destaca que os
filmes cuja ação é contemporânea das filmagens não constituem apenas um
testemunho do imaginário da época, eles conseguem também transmitir até nós a
imagem real do passado. E vai nos dizer Ferro, isso também serve para as obras
de ficção.
Capítulo XIII –
“tchapaiev: a ideologia stalinista através de um filme”
Marc Ferro
analisa o filme Tchapaiev, de 1934, que, sob a aparência de um filme que fazia
a apologia do regime, "revelou os traços profundamente tradicionalistas da
ideologia stalinista".
Capítulo XIV –
“Lenda e história: o encouraçado Potemkin”
Mark Ferro
analisa o filme “O Encouraçado Potemkin” de Sergei Eisenstein, de 1925. Ferro
considera essa obra como fruto de seu tempo, de uma ideologia e que possui uma
relação temporal peculiar com o próprio argumento contido no filme. Trata-se de um filme carregado de ideologia,
um filme revolucionário e sua justificativa acaba sendo coerente com seu tempo
histórico. Ferro considera que a pouca distância entre o tempo do filme e o
tempo de sua idealização garante uma qualidade maior e uma fidelidade histórica
também maior.
Conclusão
Marc Ferro, portanto,
se tornou um pioneiro e, ao mesmo tempo, uma referência dentro do universo da
historiografia do que podemos chamar de relação cinema/história. O livro Cinema
e História é uma contribuição impar para o campo da historiografia, e coloca
Ferro no hall dos grandes
historiadores da atualidade.
Fecho essa
conclusão com um trecho do livro: “[...] analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura,
as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o
público, a crítica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à compreensão
não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa.”
Referência
FERRO, Marc. Cinema e
História. Tradução Flavia
Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/31796658/Marc-Ferro-Cinema-e-Historia.
Acesso em 08 de março de 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário