domingo, 25 de janeiro de 2015

Tiradentes: O Homem por Trás do Mito

Por Douglas Barraqui

"Mostra-se que entre os chefes, e cabeças da Conjuração, o primeiro que suscitou as ideas de república foi o Réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que [...] tinha concebido o abominável intento de conduzir os povos d'aquelia Capitania a uma rebelião, [...] Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier [...], que foi da tropa paga da Capitania de Minas, que [...] seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas [...]; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e [...] no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste abominavel Réu; [...]”

Como é possível um único homem despertar tanta raiva a uma coroa? Ao ponto de morto, esquartejado, seus bens serem confiscados, sua terra salgada e ser considerado infame até a sua terceira geração. Este é Joaquim José da Silva Xavier, por acunha o Tiradentes, tido e lido por muitos como herói da inconfidência.

Órfão de pai e mãe e, devido a morte prematura dos pais, logo sua família perde as propriedades por dívidas. Não fez estudos regulares e ficou sob a tutela de seu tio e padrinho Sebastião Ferreira Leitão, que era cirurgião dentista.  

Praticamente fracassou em tudo na sua vida: Trabalhou como mascate e minerador. Tornou-se sócio de uma botica de assistência à pobreza na ponte do Rosário, em Vila Rica e se dedicou também às práticas farmacêuticas e ao exercício da profissão de dentista - o que lhe valeu o apelido (alcunha) de Tiradentes. Em 1780, alistou-se na tropa da Capitania de Minas Gerais; em 1781 foi nomeado comandante do destacamento dos Dragões na patrulha do "Caminho Novo" - estrada que servia como rota de escoamento da produção mineradora da capitania mineira ao porto Rio de Janeiro. Insatisfeito, tendo alcançando apenas, em 14 anos de carreira militar, o posto de alferes, patente inicial do oficialato à época (equivalente, hoje, a um tenente), e por ter perdido a função de marechal da patrulha do Caminho Novo, pediu licença da cavalaria em 1787. Foi para o Rio de Janeiro, onde sem muita alternativa, voltou a atuar como dentista. Foi então que conheceu José Álvares Maciel, cujas idéias republicanas e separatistas muito influenciaram Tiradentes.

Tiradentes o Conspirador e a Conjuração

Uma vez de volta a Minas, Tiradentes fomentou-se um entusiasta da conspiração. Mas é certo que seu papel em todo compilar da trama foi, e sempre seria, pequeno, pois, outros homens integrantes do clero e da elite mineira, como Cláudio Manuel da Costa, antigo secretário de governo, Tomás Antônio Gonzaga, ex-ouvidor da comarca, e Inácio José de Alvarenga Peixoto, minerador e grande proprietário de terras na Comarca do Rio das Mortes, eram peças e cabeças chave do movimento. Talvez pela sua importância diminuta, tenha sido usado como bode expiatório ideal, um exemplo para todos que tentassem contra a coroa.

Os conjurados - leia-se aqui conspiradores - após algumas reuniões decidiram que a revolução eclodiria no dia em que fosse decretada a derrama, dispositivo fiscal aplicado em Minas Gerais a fim de assegurar o teto de cem arrobas anuais na arrecadação do quinto; o dispositivo era aplicado em forma de confisco de bens de membros da elite mineira.

Os planos do golpe eram vagos, tanto quanto o projeto para o futuro governo. Pretendiam fundar uma república independente em Minas, cuja capital seria São João Del Rei; o distrito de Diamantina, uma vez sobre monopólio da coroa na extração de diamantes, seria liberado, bem como a exploração do ferro e a indústria, que era proibida na colônia. Seria construída uma Universidade em Vila Rica e erguido um hospital. O governo provisório seria exercido pelo poeta Tomas Antônio Gonzaga por três anos, sendo, então, convocadas eleições.

Portanto, os inconfidentes não estavam pleiteando a independência do Brasil, mas sim, e tão somente, de Minas. Para Kenneth Maxwell, historiador norte-americano, autor de “A devassa da devassa”, “a conspiração dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa”. Para Marxwell “a derrama proporcionava aos magnatas locais um subterfúgio pré-fabricado para alcançarem seus objetivos e egoístas sob o disfarce de um levante popular”.

Tiradentes o Bode Expiatório

Da elite, para a elite; sendo o nome do povo usado ou não, trata-se de uma interpretação. Esse “egoísmo” por parte da elite fica evidente quando, em fevereiro de 1789, um dos inconfidentes, Joaquim Silvério dos Reis, o homem mais endividado de Minas, em troca do perdão de suas dívidas não guardou confidência e delatou o movimento. Em maio daquele mesmo ano os inconfidentes começaram a ser presos. Sendo Tiradentes preso em 10 de maio de 1789, na casa do amigo Domingos Fernandes da Cruz, na Rua dos Latoeiros no Rio de Janeiro (atual Rua Gonçalves Dias), o alferes foi imediatamente levado para uma fortaleza na Ilha das Cobras. Ficou preso e incomunicável em uma pequena cela, de onde só sairia 1.072 dias depois, em 17 de abril de 1792. Neste período recebera as visitas de seu confessor, o Padre Raimundo Penaforte quem, para muitos historiadores, muito teria influenciado no comportamento de Tiradentes durante o período de julgamento.
Prisão de Tiradentes, por Antônio Diogo da Silva Parreiras.

Tiradentes se comportou com decência, altivez e coragem durante o período de inquérito. Enquanto a maioria dos conjurados trocavam farpas se acusando mutuamente, negando e se maldizendo; Tiradentes manteve-se digno, não acusou ninguém.   E mesmo que no início tenha tentado negar a conspiração, logo que as acusações se tornaram evidentes Tiradentes, curiosamente, atraiu a culpa para si.

Após a leitura da sentença, que durou 18 horas, tendo se iniciado às 8 da manhã do dia18 de abril de 1792 e encerrada as 2 da madrugada do dia 19, ao saber que ele e outros conjurados haviam sido condenados a morte teria declarado: “se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria para salvá-los”. Algumas horas depois, no entanto, uma carta de clemência de D. Maria I, rainha de Portugal, alterava todas as sentenças para degredo, com uma única exceção para o réu conhecido como Tiradentes.
A leitura da sentença de Tiradentes (óleo sobre tela de Leopoldino Faria).
Tiradentes no Patíbulo

Sábado, 21 de abriu de 1792, as onze da manhã, sob um sol forte, Tiradentes chegou no Largo da Lampadosa, Campo de São Domingos, centro do Rio de Janeiro, onde fora erguido o patíbulo.

Três horas antes, no primeiro encontro com o carrasco, o negro Capitania, os relatos dizem: “Vendo ao carrasco, que entrara a pôr-lhe as cordas, assim que o conheceu, lhe beijou os pés com tanta humildade, que, sendo ele do número dos que afetam dureza e crueldade, chegou a comover-se e deixou escapar uma lágrima”. Ao despir-se para receber a alva, Tiradentes despiu também a camisa e disse assim: “Nosso Senhor morreu nu por meus pecados.”

A rainha chamou o povo, por força de édito, a assistir a execução. Em meio a toda aquela multidão Tiradentes teria pedido ao carrasco que “acabasse logo com isso”. Faltava os sermões que fora logo proferido pelo frade Raimundo Penaforte que citou Eclesiastes: “Nem por pensamento traias o teu rei, por que as mesmas aves levarão a tua voz, e manifestarão o teu juízo.”
Martírio de Tiradentes,
óleo sobre tela de
Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo
(1854 — 1916).

Em meio a reza do credo, um súbito baque surdo, o corpo de Tiradentes balançava. Tiradentes encontrava-se tão magro que não tinha peso nem para se enforcar, assim, para acabar com a agonia e apressar a morte, o carrasco pulou sobre o ombro do enforcado. Morreu, então, Tiradentes.

Todavia a sentença não estava completa; determinava o esquartejamento do corpo, que começou logo em seguida. O corpo foi dividido em quatro pedaços, que foram bem salgados, colocados dentro de sacos de couro, alguns pedaços foram levados para Minhas Gerais. O quarto superior esquerdo foi pendurado em um poste em Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro. O quarto superior direito foi amarrado em uma encruzilhada na saída de Barbacena, em Minas Gerais. O quarto inferior direito foi posto na frente da estalagem de Varginha, em Minas. O último foi fincado perto de Vila Rica, atual Ouro Preto, em Minas, a cabeça de Tiradentes chegou em 20 de maio de 1792. Ficou enfiada em um poste, de frente para a sede do governo de Minas, desaparecendo, misteriosamente, no mesmo dia.

Tiradentes não Morreu

Quanto a morte de Tiradentes existem controvérsias: segundo o historiador carioca Marcos Antônio Correa, Tiradentes não morreu enforcado em 21 de abril de 1792. Ele começou a suspeitar disso quando viu uma lista de presença da Assembléia Nacional Francesa de 1793, onde constava a assinatura de um tal Joaquim José da Silva Xavier, cujo estudo grafotécnico permitiu concluir que se tratava da assinatura de Tiradentes. Segundo Correa, um ladrão condenado morreu no lugar de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida pela maçonaria. Testemunhas da morte de Tiradentes se diziam surpresas, porque o executado aparentava ter menos de 45 anos. Sustenta Correa, que Tiradentes teria sido salvo pelo poeta Cruz e Silva, maçom, amigo dos inconfidentes, e um dos juízes da Devassa. Logo depois teria embarcado incógnito para Lisboa em 1792.

Tendo vivido ou não, Tiradentes entrou para história. Um herói? Um mito? Ou pura e simplesmente um bode expiatório? Heróis e vilões sempre existiram e sempre vão existir na história da humanidade. Esses heróis e vilões, quando existiram, tiveram toda a coragem, determinação, virtudes que foram as causas dos resultados alcançados, derrota ou vitória, morte ou vida.  Mas e quando o herói, mesmo o vilão, é fabricado, é construído? O que realmente sabemos, e que não podemos nos esquecer, é que “a história é escrita pelos vencedores”, enquanto “os perdedores são sepultados em algum lugar obscuro do passado”.
Tiradentes Esquartejado, em tela de Pedro Américo (1893)- Acervo: Museu Mariano Procópio.

Tiradentes o Herói

A versão dos vencedores foi, e ainda é, contada na história do Brasil colônia e Brasil monárquico. José Murilo de Carvalho, em “A Formação das Almas”, diz que nunca a construção histórica esteve tão presente em nossa nação como na transição da Monarquia para a República. Faltava para aquele país em construção vilões e, principalmente, heróis.

É certo que Tiradentes não foi criado pela República, todavia sua imagem foi expropriada pelos vencedores. O novo regime, a República, precisava de alguém que pudesse apagar a então figura, também construída, do herói D. Pedro I.  O novo herói deveria ser forte, impactante e capaz de atingir a cabeça e o coração do povo. Um herói que pudesse trazer a este povo novos valores para a unidade de uma nação em construção.

Tiradentes, aquela figura esquelética que foi enforcada e esquartejada, foi fabricado de tal modo que mesmo o seu rosto teve que ser falsificado. De certo não foi deixada nenhuma imagem original de Tiradentes o que muito ajudou a República, que tratou de criar seu bustos em quadros e estátuas. Tiradentes aparece como Cristo, de barba e cabelos compridos, alguém que morreu por todos. José Murilo de Carvalho mostra que a República se apoderou da memória popular, referente a Tiradentes, e transformou sua figura em herói republicano.

A escolha de Tiradentes, é certo, não se deve apenas por ter sido ele um defensor do regime republicano; deve-se, também, a sua figura contida na memória e na tradição popular com a qual o povo brasileiro, uma sociedade predominantemente cristã, se identificava com a figura de um mártir que morreu por todos. Assim como Cristo, este foi Tiradentes.

Tiradentes o Homem de Carne e Osso

Um herói, um mito, uma fraude, tendo vivido ou não, Tiradentes foi um homem que, não se pode negar ou diminuí-lo, lutou por ideais e por algo muito maior, em um momento em que conspirar contra a coroa era crime de lesa-majestade.

A história humana é feita por homens como Tiradentes, de carne e osso. Mesmo que um dia esquartejado, Tiradentes e seu legado, fabricado, construído ou fato histórico, ajudaram direta e indiretamente a construir uma nação, o Brasil. Devemos aprender com a história, ou ela de nada serve a não ser matar nossa sórdida curiosidade, por vezes até mórbida, pelo passado histórico.

REFERÊNCIAS

BALLAROTTI, Carlos Roberto. A Construção do mito de Tiradentes: de mártir republicano a herói cívico na atualidade. Antíteses, vol. 2, n. 3, jan.-jun. de 2009, pp. 201-225.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FLORENCIO, Fidelis. “Tiradentes vivo”. Diário de Minas. Belo Horizonte, 7 de maio de 1952, p. 4.

FURTADO, João Pinto. Inconfidência mineira: crítica histórica e diálogo com a historiografia. São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2000. (Tese de Doutorado).

MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MOTA, Carlos Guilherme. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979.


SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Morte de Tiradentes tem contestação. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 abr. 1999.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

BBB: quem são os nossos heróis?

Por Douglas Barraqui

Um “zoológico humano” é o que é o Big Brother Brasil. Programa de baixarias e vilanias, que alguns gostam de chamar de entretenimento, da TV Globo. Um “zoológico humano” que a todo o momento nos empurras desvalores miolo adentro e alienação.

Seria o BBB o reflexo de uma sociedade narcisista, consumista, individualista e superficial? Ou, ao contrário, o BBB estaria refletindo esses pseudos valores para o público ao deixar de estimular a cultura, a inteligência, a criticidade; e  corrompendo princípios como solidariedade, ética e moral? Neste programa o que vale é ser bonito dentro de um padrão predeterminado de homens e mulheres sarados e saradas, siliconados e siliconadas. Em meio ao um reality show de pornografia e conspirações, em frente às câmeras o que se assiste é o reflexo da ganância pelo prêmio em dinheiro.

George Orwell se levantaria do túmulo se soubesse que seu livro iria dar nome a um reality show. O Big Brother, traduzido como o “grande irmão”, é um personagem fictício do Romance intitulado “1984” de George Orwell. Escrito originalmente em 1948, trata-se de uma sociedade vigiada dia e noite pelo grande irmão, que vê tudo, controla tudo, decide tudo. De fato os regimes fascistas da Alemanha e da Itália serviram de inspiração ao autor.

O Big Brother Brasil é um enlatado holandês criado originalmente por John de Mol, executivo da empresa Endemol. Consiste em pessoas “comuns”, pré selecionadas, que conviveriam juntas dentro de um mesmo espaço, e sendo vigiadas vinte quatro horas por dia por câmeras.

A versão brasileira conta com o apresentador Pedro Bial: Jornalista, escritor, cineasta e poeta. Repórter que cobriu a queda do muro de Berlim, Bial prometeu um “zoológico humano divertido” e chama os participantes do reality show de heróis. Será que Bial, pessoa instruída que é, desconhece o verdadeiro significado da palavra herói? Será que não percebe que o BBB significa a morte da cultura, de valores e princípios como ética, moral, solidariedade...?

O fato é que a TV brasileira, como um todo, não esta cumprindo seu papel, que nas palavras de Arlindo Machado, é o de colaborar na construção da cidadania. [1] Os críticos da Escola de Frankfut viam a TV como uma ferramenta a serviço do poder, vinculadora de interesses ideológicos dos detentores dos meios de produção e que seria um meio de comunicação incapaz de colaborar para a construção da cidadania. [2] E se esses mesmos críticos de Frankfut tivessem assistidos ao BBB veriam o show de horrores segundo o qual os dominantes submeteram os dominados.

BBB é um programa de entretenimento? Se você respondeu sim, reveja seus conceitos. E se você ainda acha que os participantes do BBB são heróis lembre-se dos bombeiros, dos policiais, dos professores, das donas de casa, dos pedreiros, dos garis, das empregadas domésticas que trabalham dia a dia por um mundo melhor recebendo salário indigno. Acordam de madrugada, no cantar do galo, pegam duas a quatro conduções para chegar ao trabalho, e receber um salário mínimo, e alimentar uma família de seis a dez bocas. Isso é Reality Show,  isso sim é ser herói.

Referência:

[1] MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Ed. Senac, 2005.


[2] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Amazonas: história e mito se confundem

Por Douglas Barraqui

“Eram 10 ou 12 mulheres guerreiras que vieram ajudar os nativos na sua peleja. A estas, nós as vimos: andavam combatendo diante de todos os índios como capitães e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam lhes mostrar as costas. São muito alvas e altas, com cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas a pelo, tapadas em suas vergonhas; com os seus arcos e flechas na mão fazem tanta guerra como dez índios”.

O relato acima é de autoria do frei dominicano Gaspar de Carvajal, cronista da malfadada expedição de Francisco de Orellana; naquela que havia de ser a primeira expedição a percorrer integralmente o curso do rio Amazonas, desde os Andes ao oceano Atlântico e, que também, batizou o rio com esse nome. O trecho acima descreve as “mitológicas” amazonas que legaram seu nome ao maior e mais volumoso rio e a maior floresta equatorial do mundo.

Na mitologia grega amazonas eram as integrantes de uma antiga nação de habilidosas guerreiras que, segundo Heródoto, no Livro IV, habitavam a fronteira da Cítia, na Sarmácia. Segundo a mitologia entre as rainhas célebres das amazonas estão Pentesileia, que teria participado da Guerra de Troia, e sua irmã, Hipólita, cujo cinturão foi o objeto de um dos doze trabalhos de Hércules. Saqueadoras, as amazonas eram frequentemente ilustradas em batalhas contra guerreiros gregos. Tão boas arqueiras, quanto na arte de montar cavalos, retiravam um dos seios para facilitar o manejo do arco e flecha. Buscando a etimologia da palavra amazona, "a" é um prefixo negativo; "mazos" = peito, mama; logo Amazona significaria "sem peito". Mito ou história? Estudos recentes apontam que as amazonas, que habitavam a Cítia, eram iranianas conhecidas por montar a cavalos. Os jônicos, sempre ameaçados pelos persas - os mais importantes dentre os iranianos -, foram os primeiros a entrar em contato com as bravas guerreiras. Amazōn é a forma jônica para a palavra ha-mazan de origem iraniana, cujo significado é “lutando junto”.  

Mas como o mito das amazonas foi parar na América? Em fevereiro de 1541, Francisco de Orellana - que em 1535 participou, juntamente com Francisco Pizarro, da conquista do Peru - liderava uma expedição com 21 homens e mais o frei Gaspar de Carvajal pelo rio Napo. A expedição fora se juntar ao imenso grupo liderado por Gonzalo Pizarro que havia partido da capital do império Inca em busca da mítica cidade de El Dorado e o “reino da canela” – uma especiaria tropical muito bem quista no século XVI, boa para o pulmão, antisséptica e digestiva.

Francisco de Orellana
Em dezembro de 1541 Orellana e Pizarro enfim venceram as terras áridas e geladas dos Andes. Famintos e doentes aqueles homens agora enfrentariam a floresta mais perigosa do mundo, nunca antes penetrada por um europeu. Pizarro teria jogado aos cães metade dos já debilitados índios sobreviventes e queimado vivo o restante. Após construir um barco Orellana, com 57 homens, começou a descer o rio que viria a ser chamado de Coca, que deságua no Napo, que é afluente do Ucayali, que no Brasil é chamado de rio Solimões. O Solimões, por sua vez, é um dos formadores do grandioso rio que viria ser batizado de “rio das Amazonas”, rio no qual a embarcação de Orellana, juntamente com Carvajal, adentrou no dia 11 de fevereiro de 1542.

Na descida da imensidão das águas a idéia era saquear as aldeias para conseguir mantimentos e recursos. Sem encontrá-las, famintos, os homens comeram o couro dos cintos e das botas fervidos em água e ervas. Em julho daquele ano, na confluência do rio que hoje é chamado de Madeira, como narrou Carvajal, a expedição se deparou com 12 bravas amazonas. No conflito alguns homens perderam a sua vida e sete das bravas mulheres perderam as suas.

Aquelas, na verdade, eram as, já conhecidas pelos nativos, cunhapuiara, que quer dizer “grandes senhoras”. Antes, ainda em Quito, de onde partiu a expedição, diz Carvajal: "nos haviam contado a respeito das guerreiras, a quem os índios chamavam de coniupuiara”.

De fato o relato mais detalhado das tais “grandes senhoras” é do Frei Gaspar de Carvajal que mesmo sem uma das vistas, perdida para uma flechada, sobre as guerreiras que partiram para lutar junto a índios que se encontravam na foz do rio Jacundá, escreveu:  "Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira: são súditos e tributários das Amazonas, e conhecidos a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram 10 ou 12 delas. Aí perguntou o Capitão Orellana: Que mulheres eram aquelas que tinham vindo ajudá-los a fazer-nos guerra. Disse o índio que eram umas mulheres que residiam no interior, a umas sete léguas de Jornada da costa, e por seu senhor Couynco, seu súdito, tinham vindo guardar a costa. Perguntou o Capitão se estas mulheres eram casadas, e o índio disse que não. Perguntou o Capitão de que modo vivem. Respondeu o índio que vivia no interior, e que ele tinha lá estado muitas vezes e visto o seu trato e residências, pois como seu vassalo, ia levar o tributo, quando o senhor o mandava. Perguntou o Capitão se estas mulheres eram muitas. Disse o índio que sim, e que ele sabia, pelo nome, setenta aldeias, e os contou diante dos que ai estava, e que em algumas havia estado. Perguntou o Capitão se estas aldeias eram de palha. Disse o índio que não, mas de pedra e com portas, e que de uma aldeia a outra iam caminhos cercados de um e outro lado e de distância em distância, com guardas, para que não possa entrar ninguém sem pagar direitos. Perguntou-lhe o Capitão se estas mulheres pariam. Disse o índio que sim. Perguntou o Capitão como, não sendo casadas, nem residindo homens com elas emprenhavam. Ele disse que estas índias coabitavam com índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele desejo, juntam grande porção de gente de guerra e vão fazer guerra a um grande senhor que reside e tem a sua terra junto a destas mulheres, e a força, a os trazem as suas terras e os tem consigo o tempo que lhes agrada, e depois quando vem o tempo de parir, se tem filho o matam e o mandam ao pai; se é filha, a criam com grandes solenidades e a educam nas coisas de guerra. Disse mais, que entre todas estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as demais debaixo de sua mão e jurisdição, a qual senhora se chama Conhori.”

Carvajal nunca afirmou que as tais guerreiras eram extirpadas dos seios. Mesmo assim ele as chamou pelo mesmo nome que Homero utilizou, no século VIII a. C., para se referir as mulheres guerreiras da antiga Cítia, amazonas. De fato, entre os índios da América, não era raro às vezes em que as mulheres iam à guerra com os homens e, porque não, sem eles, para defender sua tribo.

Carvajal ajudou, é certo, a recriar a lenda das amazonas em uma versão para a América. O belicoso combate, quando contado ao rei Carlos V da Espanha, este ficou de certo modo tão impressionado que, inspirado nas antigas guerreiras da Cítia, as amazonas, assim deu o nome ao rio. O que, também foi feito com a maior floresta equatorial do mundo que o cerca.

Referências:

BERGMANN, F. G. Les Amazones dans l'histoire et dans la fable. Colmar, 1853.

MOTT, Luiz. As Amazonas: um mito e algumas hipóteses. Revista de História. Universidade Federal de Ouro Preto. Volume1 NPI 1990.

KLEISSMANN, M. Les Amazones dans l'Artet la Litterauire Auiques. Paris, 1875.


LACOUR, P. Les Amazones. Paris, 1901. 3.