Por Douglas Barraqui
O Hino Nacional Brasileiro, cantado – ou pelo menos se tenta cantá-lo - nos jogos de futebol ou em solenidades específicas, é muito pouco conhecido em sua totalidade historiográfica e, por sua complexidade de significados simbólicos, é incompreensível aos ouvidos dos brasileiros. Um Hino Nacional que deveria ser um instrumento patriótico, um patrimônio linguístico e semiológico da nação acaba por ter sua letra decorada como uma tabuada, e de forma precária, pelos filhos de sua pátria.
Comprado por cinco contos de reis pelo então presidente da república Epitácio Pessoa, os direitos plenos sobre a letra do hino foram garantidos pelo decreto de nº 4.559 de 21 de agosto de 1922. Originalmente a música fora composta em 1831, para ser tocada em banda, pelo maestro Francisco Manuel da Silva e se chamava “Marcha Triunfal”. Tornou-se muito popular por conter versos que comemoravam a abdicação de D. Pedro I. Posteriormente sua letra foi alterada por Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva e a composição, devido à popularidade, era extra-oficialmente considerada como o Hino Nacional Brasileiro. Na República abriu-se concurso para oficializar o Hino Nacional, quem ganhou foi Leopoldo Miguez. Todavia, a versão de Francisco Manuel da Silva era muito popular entre os brasileiros que se recusavam em cantar o novo hino ("Liberdade, liberdade! Abre as asas sobre nós!..."). Assim a composição de Francisco foi oficializado por Deodoro da Fonseca, então primeiro presidente, como Hino Nacional Brasileiro e a letra de Leopoldo Miguez passaria a ser o Hino da Proclamação da República.
Joaquim Osório Duque Estrada, jornalista carioca, crítico literário, integrante da Academia Brasileira de Letras, copos a letra para o Hino Nacional tendo ela sido oficializada durante o centenário da Independência 1922. A letra então foi comprada por Epitácio Pessoa em 21 de agosto do mesmo ano.
A letra original é a seguinte:
I
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante,
E o Sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da pátria nesse instante.
Se o penhor desta igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!
Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve!
Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido,
A imagem do Cruzeiro resplandece.
Gigante pela própria natureza,
És belo, és forte, impávido colosso,
E o teu futuro espelha essa grandeza.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil,
Ó pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!
II
Deitado eternamente em berço esplêndido,
Ao som do mar e à luz do céu profundo,
Fulguras, ó Brasil, florão da América,
Iluminado ao Sol do Novo Mundo!
Do que a terra mais garrida,
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
"Nossos bosques tem mais vida,"
"Nossa vida" no teu seio "mais amores".
Ó pátria amada,
Idolatrada,
Salve! Salve!
Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado,
E diga o verde-louro dessa flâmula
- Paz no futuro e glória no passado.
Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil,
Ó pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!
Como devemos olhar o Hino Nacional com os olhos da historiografia? Devemos julgar sua fidelidade aos fatos históricos? Devemos fazer uma analise semiótica, ou seja, da linguagem conforme sua origem? Pois bem: a princípio quando lemos à letra do Hino Nacional, percebemos um vocábulo demasiadamente complexo com palavras de difícil pronuncia e significados. Para uma sociedade, do início do século XX, com elevado grau de analfabetismo, a dificuldade semântica das palavras dava ao Hino Nacional uma grande falta de clareza. Logo, o mesmo não foi composto com intuito lançar uma ideologia sobre os brasileiros. Se este era o objetivo o Duque Estrada ficou pelo caminho. Observe nos versos abaixo a falta de clareza:
"Brasil, um sonho intenso, um raio vívido",
"Se em teu formoso céu, risonho e límpido",
"Fulguras, ó Brasil, florão da América",
“'Nossa vida' no teu seio 'mais amores' ";
"O lábaro que ostentas estrelado e diga verde-louro desta flâmula".
Por ser um cântico pátrio, sua letra deveria ser fácil e de memorização prática o que facilitaria sua reprodução. Todavia, a letra do Hino gera um fenômeno muito comum e ao mesmo tempo criticado pelos mais patriotas: o de que o povo brasileiro, em uma boa parcela, simplesmente não sabe cantar o Hino de sua pátria. A complexidade da letra do Hino acaba indo em direção contrária ao sentimento de nacionalismo brasileiro.
Com ajuda do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa observe como os versos do Hino podem ser, em até certo ponto, incompreensíveis para grande maioria dos brasileiros:
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”
Plácidas: serenas, tranquilas;
“De um povo heróico o brado retumbante”
Brado: grito;
Retumbante: que retumba, refletir ou repetir com estrondo;
“E o Sol da liberdade, em raios fúlgidos”
Fúlgidos: brilhantes;
“Se o penhor desta igualdade”
Penhor: garantia, prova;
“Brasil, um sonho intenso, um raio vívido”
Vívido: luminoso, brilhante;
“Se em teu formoso céu, risonho e límpido,”
Límpido: claro;
“A imagem do Cruzeiro resplandece.”
Resplandece: brilha;
“És belo, és forte, impávido colosso,”
Impávido: destemido;
Colosso: agigantado, descomunal;
“Fulguras, ó Brasil, florão da América,”
Fulguras: brilha;
Florão: Objeto circular, em forma de flor, em uma abóbada;
“Do que a terra mais garrida,”
Garrida: (incógnita – o que pode ser encontrado é somente a definição de sineta, pequeno sino);
“O lábaro que ostentas estrelado,”
Lábaro: estandarte dos exércitos romanos
Ostentas: mostrar, exibir;
“E diga o verde-louro dessa flâmula”
Flâmula: bandeira estreita;
“Mas, se ergues da justiça a clava forte,”
Clava: pau pesado, utilizado como arma.
São uma média de dezesseis palavras de elevado grau de compreensão que até mesmo para a pessoa mais letrada pode oferecer dificuldade. Com um olhar mais aguçado podemos perceber ainda a redundância em duas duplas de versos:
"E o Sol da liberdade, em raios fúlgidos/Brilhou", quer dizer: os raios brilhantes brilharam.
“Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso", quer dizer: que é gigante pela própria natureza, é belo, é forte, gigante destemido.
Partindo para uma analise da fidelidade do Hino aos fatos históricos, a letra carrega consigo uma série de distorções da verdade ou pode ter sido assim composto para ocultar algumas verdades, veja:
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante”
O tão famoso Grito do Ipiranga teria sido desferido por D. Pedro I em uma viagem de retorno da cidade de Santos, as margens do Rio Ipiranga. O trecho nos remete ao uma idéia de um povo que lutou e esteve envolvido diretamente no processo de emancipação do Brasil. Todavia, com uma boa leitura de Estilaque Ferreira Santos, Manoel Oliveira Lima, bem como de outros autores, percebemos que o povo brasileiro em sua totalidade esteve letárgico aos acontecimentos, ou seja, o povo não participou diretamente do processo de emancipação.
“E o Sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da pátria nesse instante.”
A emancipação ocorreu de fato para as elites que se viram livres das amarras econômicas e políticas de Portugal antiga metrópole. A emancipação do Brasil foi em primeiro momento reconhecida pelos EUA, calcada na Doutrina Monroe da “América para os americanos” e graças a tutela da Inglaterra que fez o empréstimo ao Brasil de dois milhões de libras para pagar a indenização à Portugal.
“Se o penhor desta igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,”
A desigualdade social no Brasil é uma problemática anacrônica e de raízes históricas profundas. Se hoje ela é tão presente, imagine no início do século XX, quando negros, indígenas, mulheres e analfabetos foram deixados a margem da primeira carta constituinte republicana. Essa suposta igualdade que conseguimos conquistar com braços fortes, remete a idéia de um processo de ruptura pautado por lutas sociais com ampla participação popular quando na verdade, diferentemente do que ocorreu nos processos de independência da América inglesa e espanhola, nossa independência foi pacífica e com participação popular anulada. Alguns casos reacionários isolados no norte e nordeste, mas nada que se demonstrasse um conflito com o povo brasileiro amplamente engajado.
“Mas, se ergues da justiça a clava forte,”
Ao longo de sua história o Brasil passou por 8 Cartas Constituintes e só foi conhecer a democracia na última documento de 1988. Em contra partida os EUA possuem apenas uma Carta, aprovada pela Convenção Constitucional da Filadélfia de 1787. A Constituinte dos EUA está longe de ser um exemplo de leis fundamentais para um país, todavia, o Brasil passou por turbulentas transições políticas ao longo de sua história e ainda sim as leis de nossos país não são aplicadas da mesma forma para todos. Leis que geram interpretações dúbias, criticadas por juristas pela sua ineficiência, morosidade e falta de imparcialidade.
CONCLUSÃO
É nítida a intenção de engrandecer a pátria, mostrar sua força, beleza e união em Hinos oficiais de outros países. Esta também foi à intenção do Hino Nacional do Brasil, todavia, fruto de um concurso, ele acabou por destoar da verdadeira história do país.
Devemos ainda salientar que a complexidade linguística na letra do Hino se deve a conjuntura do fim do século XIX e início do século XX, contexto de grande efervescência positivista e romântica. Complexidade esta que acaba por dificultar sua compreenção.
Muito embora sua obrigatoriedade, desde 2009, nas escolas públicas e particulares de ser cantado pelo menos uma vez por semana, os dois fatores mencionados fazem com que o Hino brasileiro seja pouco conhecido em sua totalidade. Para muitos é considerado um Hino muito belo desde sua melodia a sua letra. Para outros, mais conhecedores da história do Brasil, gera polêmicas e críticas. E querendo, ou não, é um dos símbolos de nossa pátria amada Brasil.
Bibliografias:
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A monarquia no Brasil: o pensamento político da independência. Vitória, ES: EDUFES, 1999. 335p. - (CEG Publicações ; n.4)
LIMA, Manoel Oliveira. O movimento da independencia: 1821-1822. Sao Paulo: Melhoramentos, 1922.
DECRETO N. 4.559 – DE 21 DE AGOSTO DE 1922. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=31461. Acesso em 12 de março de 2011.
Lei que trata dos Símbolos Nacionais, entre eles o Hino Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5700.htm. Acesso em 12 de março de 2011.